Por Olavo David
Tida como um dos locais de maior valoração histórica no Distrito Federal, a Vila Planalto é, até hoje, um sinônimo de resistência. Seja por parte dos moradores, que insistiram por quase 50 anos – e ainda insistem – para que operários da construção da terceira capital brasileira, e seus herdeiros, pudessem permanecer no local onde criaram raízes. Além disso, é casa da primeira rivalidade do futebol candango, o confronto entre Rabello e Defelê, conhecido como “Rabelê”.
Criados pelas empresas que edificaram os primeiros monumentos da megalomania que é Brasília, os times eram compostos pelos trabalhadores, parte do misto de carne e aço que cobria o Planalto Central nos primórdios da capital. E onde jogavam esses clubes? Os dois campos ainda existem, no coração da Vila, mas em situações distintas: o campo da Rabello é apenas um retângulo de areia numa praça da região, cercado por casas que tomaram os lugares dos vestiários.
O outro, do Departamento de Força e Luz da Novacap, fica no atual Clube de Vizinhança da região. Inaugurado em 1960, o estádio sediou o tricampeonato do clube e recebeu o primeiro jogo nacional do DF. Por quase cinco décadas, porém, o local caiu no esquecimento do esporte profissional. Utilizado em campeonatos de base, amadores ou eventos comemorativos, teve as arquibancadas e vestiários comidos pelo tempo. Parecia um caminho sem volta, até que um novo clube resolveu agir.
A reforma
Criado pelo advogado Luís Felipe Belmonte, o Real Brasília foi um cometa no futebol candango. Após algumas temporadas, resolveu deixar os caros alugueis do estéril Mané Garrincha pós-Copa de 2014 e investiu na reforma do estádio histórico. Conversei com João Anísio, velho conhecido na Vila e presidente do Clube Unidade de Vizinhança, responsável pela gestão do estádio. Ele, basicamente, exaltou a reforma do estádio, mas não apenas pelo futebol.
“O clube [de Vizinhança] era responsável pelo campo e fizemos a parceria com o Real Brasília para a reforma, com pequenas alterações, até porque não dava para manter algumas questões como eram as originais. O estádio em si é administrado pelo clube. O Defelê é um patrimônio da Vila. O que é cuidar do patrimônio? O Defelê era um drive thru de drogas para o DF, ponto de prostituição, havia muitos roubos; agora ele atende projetos sociais. Temos todas as licenças ambientais e de corpo de bombeiros para o funcionamento do estádio”, disse-me Anísio.
Apesar das licenças ambientais e do Corpo de Bombeiros, o Governo do Distrito Federal (GDF) cruzou os braços e sequer tinha ciência das melhorias feitas no campo de jogo – mesmo com a ampla cobertura na imprensa local, não apenas no DDE, como em veículos concorrentes. Ao contrário da iniciativa de Belmonte, que, ainda que à revelia das autoridades, preservou e reformou um espaço esportivo, a reforma aponta o descaso com o qual o patrimônio é tratado pelo Buriti.
Conjunto tombado por Lei
Junto à consolidação da Democracia no Brasil, através da Constituição Federal, o ano de 1988 trouxe o Decreto nº 11.079, que instituiu o tombamento da Vila Planalto. Fruto da luta de trabalhadores e seus herdeiros – e, acima de tudo, das mulheres que compunham o Grupo das 10, pioneiras na luta pelo reconhecimento do local –, a elevação da vizinhança a Patrimônio Material do DF, com tudo que isso implicaria no contexto de preservação histórica.
Especialista em Patrimônio Histórico, Leiliane Rebouças explicou como se espraiam as obrigações com a preservação do local. “A Vila Planalto é um conjunto tombado, e algumas áreas são de preservação rigorosa, mas algumas já foram degradadas”, contou-me ela, que aos 10 anos furou a segurança do então presidente José Sarney para entregar-lhe uma carta na qual pedia cuidado com os moradores da região, mazelados por esgoto a céu aberto e condições precárias de moradia.
Conforme relatou à reportagem, “essas áreas de preservação rigorosa não tiveram essa preservação rigorosa”. No Decreto, os artigos 3º e 4º apontam a necessidade de autorização de órgãos especializados antes de quaisquer alterações em edificações tombadas. “As normas de preservação, ocupação e uso do solo para o conjunto tombado (…) serão definidas pelo Conselho de Arquitetura, Urbanismo e Meio Ambiente, ouvidos, previamente, a Secretaria de Cultura e a Terracap”, diz um deles.
O outro, por sua vez, classifica como “crime contra o Patrimônio” do DF, assim definido “qualquer ato que importe na destruição, mutilação e alteração dos bens” históricos. Como sabemos, não foi o caso da reforma do Defelê. Ainda assim, o Distrito do Esporte questionou a Subsecretaria do Patrimônio Cultural (Supac) acerca da obra. A pasta informou que “o projeto não passou” pela Secretaria de Cultura (Secec), como manda a legislação, e apontou “a responsabilidade da Supac” em “orientar, quanto às diretrizes de preservação, e aprovar o projeto”.
Poderia ser pior
Finaliza a Supac vaticinando o óbvio: “Não chegou nenhum pedido de orientação ou denúncia” acerca da reforma do Defelê nos escaninhos do órgão. Ou seja, a autoridade responsável pela curadoria da história material do DF não tomou ciência que um de seus principais ativos culturais passou por reforma – isso um ano depois da reinauguração do estádio, dada em partida entre Real Brasília e Brasiliense, pelo Candangão 2020. Liguei e encaminhei mensagem a Belmonte, mecenas e presidente honorário do Real.
Alinhado e aliado ao pensamento do atual presidente da República e envolvido na vida partidária, o advogado e cartola viu na matéria uma conspiração por parte de algum adversário eleitoral. “Sem sentido. Aval pra consertar o que já estava deteriorado? Não estou entendendo seu questionamento. Atende logo o pedido do Ibaneis [Rocha, governador] e a gente vê o que faz”, escreveu-me o vice-presidente do ainda em gestação Aliança pelo Brasil.
O que passa despercebido nas benesses é a falta de zelo com a história desportiva do DF. Por meio de um pedido de acesso à informação, obtive a relação entre o que foi previsto para 2021 na área de Patrimônio Histórico e o que foi efetivamente gasto. Na resposta, a ouvidoria da Secec informou que, dos quase R$ 11,5 milhões reservados para o setor, apenas R$ 6 milhões, pouco mais da metade, foram empenhados até agosto deste ano .
O cenário é ainda pior quando se analisa quanto foi efetivamente aplicado. Desse total, cerca de R$ 3 milhões foram pagos a fornecedores por obras, reparos ou outros tipos de melhorias necessárias a algo com muita idade e pouco cuidado. Uma mixaria, se comparada aos investimentos programados pelo governo distrital em outras áreas, como o Museu da Bíblia, que, se sair do papel, deve custar algo em torno de R$ 63 milhões – parece loucura, mas o edital para a construção segue no ar.