*O texto a seguir é de inteira responsabilidade de seu autor. As possíveis opiniões e/ou conclusões nele emitidas não estão relacionadas, necessariamente, ao ponto de vista do Distrito do Esporte.
Por Gabriel Caetano*
O grande artilheiro da Copa do Brasil de um dos maiores clubes do Brasil manda a bola no travessão, aos 37 do segundo tempo. No rebote, seu colega de equipe ainda marca aquele que seria o gol da classificação. Porém, o artilheiro já havia tocado na bola antes, caracterizando o segundo toque, invalidando a jogada e desclassificando o clube, dando a vaga para uma equipe da terceira divisão.
Foi assim que o torcedor alvinegro viu a queda do Botafogo para o Gama, em pleno Maracanã, no dia 7 de abril de 2004. Depois de um 4 a 4 caótico no jogo de ida, o alviverde não sucumbiu e jantou o Glorioso em território inimigo, avançando às oitavas de final da Copa do Brasil.
Incrivelmente, esse roteiro dentro de campo não foi o “prato principal” e, como nas grandes epopeias, foi apenas o fechamento dramático e fantástico para coroar um herói – nesse caso, vários heróis.
Roteiro desenhando-se
A dramaturgia dessa história começou a se desenhar em 4 de fevereiro de 2004, em uma cidade do interior paranaense. Diante do Paranavaí (PR), o Gama teve uma partida difícil em um campo pior ainda, com mais areia do que grama. No final, nenhum dos times conseguiu sair do zero.
Com o apito final, o adversário paranaense já tinha sua cartada: Allan, lateral direito do Gama, não estava inscrito no Boletim Informativo Diário (BID) da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). O clube paranaense apresentou denúncia, pedindo a exclusão imediata do clube candango por jogador irregular.
A vitória, unânime nos tribunais, veio no mesmo dia da partida de volta. Em campo, o alviverde não se deprimiu e engatilhou a ideia de que a única chance de classificação era a vitória – a derrota nos tribunais tinha sido apenas em primeira instância.
Em seu melhor estilo, o zagueiro-artilheiro Emerson marcou o primeiro, aproveitando cruzamento e cabeceando para o fundo das redes. Victor Santana e Bobby completaram a vitória: 3 a 0.
O advogado Fábio Franco, do clube paranaense, se baseou no Artigo 214 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) para apresentar denúncia. Naquela época, constava no artigo que o clube seria punido ao “incluir atleta que não tenha condição legal de participar da partida, prova ou equivalente”.
Artigo 214 (CBJD) – Incluir atleta que não tenha condição legal de participar de partida, prova ou equivalente.
Pena: perda do dobro do número de pontos previstos no regulamento da competição para o caso de vitória e multa de R$5,000,00 (cinco mil reais) à R$50.000,00 (cinquenta mil reais).
E o que seria “incluir atleta que não tenha condição legal de participar da partida, prova ou equivalente”?
Apenas o simples fato dele constar na súmula da partida ou o ato dele entrar em campo, seja como titular ou substituto?
Foi aí que o Gama mudou de estratégia.
Reviravolta nos tribunais; Heróis inglórios
O estudo para mudar a tática no recurso pedido pelo Gama foi feito por Paulo Goyaz, advogado do clube no “Caso Gama” e na época presidente recém-eleito do TJD-DF. Na nova contestação, a tese era que Allan não poderia ser considerado como “participante da partida”, pois não saiu do banco.
No dia 3 de março de 2004, o alviverde conseguiu um efeito suspensivo. O presidente do STJD, Luiz Zveiter, decidiu que a CBF não poderia marcar os jogos da segunda fase entre Paranavaí e Botafogo até que houvesse um julgamento final, marcado para o dia 11 de março.
O lobby do Gama para o julgamento no Rio de Janeiro tinha além de Paulo Goyaz e os representantes da diretoria alviverde, Fábio Simão, presidente da Federação Metropolitana de Futebol (FMF, atual FFDF) e Weber Magalhães, Secretário de Esportes e Lazer, na época.
Na briga entre Gama e CBF, quando era presidente da federação do DF, Weber foi acusado de omissão por torcedores e veículos de imprensa, chegando a receber críticas de diretores alviverdes por conta de “atitudes políticas” e desde então parte da torcida tinha “um pé atrás” com ele.
Chegou o dia 11 de março e o Gama deu outra goleada no Paranavaí. Em segunda e última instância, o STJD deu parecer favorável ao alviverde por 6 a 1.
Na volta ao DF, centenas de torcedores e até jogadores esperavam os cartolas no aeroporto. Ao desembarcar, Wagner Marques, Paulo Goyaz e até mesmo Weber Magalhães foram ovacionados pela torcida gamense. E quem diria, mesmo contestado por sua posição acuada em 2000, o então secretário Weber Magalhães foi um dos mais aclamados, recebido aos cantos da torcida Inferno Verde: “O Weber é da Inferno, ô, ô, ô, ô, ô”.
Sete anos depois, a torcida alviverde estaria praticamente chutando Paulo Goyaz e Wagner Marques, graças ao ostracismo atingido pelo clube em meio a gestão deles, principalmente por conta de problemas financeiros e polêmicas extracampo, como a negociação de jogadores e a venda da sede social. Daquele grupo, Weber Magalhães, atual presidente do Gama, é o único que ainda mantém prestígio com a torcida – mas já teve provas em seus primeiros anos de gestão no alviverde: se vacilar, o bicho pega.
Lacraram o Bezerrão, mas não conseguiram vencer
O clube paranaense não se deu por vencido e procurou a Justiça Comum, sendo o Procon da cidade de Paranavaí o autor da ação – clubes desportivos não poderiam entrar diretamente com ações na Justiça Comum.
No dia 24 de março, data da primeira partida entre Gama e Botafogo, os paranaenses chegaram a uma vitória, em primeira instância. A juíza Thereza Figueiredo Barbosa, da 1ª Vara de Precatórias do Distrito Federal, determinou às 14h34 o cumprimento da liminar cedida ao Procon de Paranavaí e exigiu que se lacrasse os portões do Bezerrão.
A resposta do alviverde foi correr até a sede da 1ª Vara de Precatórias do DF, no Setor de Rádio e TV Sul, para apresentar liminar concedida pela 1ª Vara Cível do Rio de Janeiro, garantindo a vaga do clube. Às 18h21, pouco mais de duas horas antes do previsto para o começo da partida, a juíza atendeu o pedido e determinou o cumprimento da decisão.
Agora era correr para deixar tudo pronto para a partida. Os lacres foram retirados e os portões abertos às 19h32. Os torcedores teriam menos de uma hora para correr até o Bezerrão, comprar ingresso e entrar no estádio.
Vitória triunfal
Como era de se esperar, o tumulto foi formado e até metade do primeiro tempo ainda havia torcedores entrando no estádio. Oficialmente foram vendidos 3.020 ingressos, mas o estádio estava lotado, a perspectiva pelo “olhômetro” era de um público de 10 mil presentes.
Graças a esse lacre e a incerteza de ter jogo ou não, fiquei fora da lista de gandulas – eu fazia escolinha no Jaime dos Santos, atrás do Bezerrão e por isso era gandula habitual.
Quase não vi o espetáculo também, meu pai pensou que não teria jogo. Como o prédio onde morávamos era ao lado do Bezerrão, ver o fluxo de pessoas indo ao estádio despertou a vontade do coroa e partimos ao alçapão. Ainda perdi uma parte, entrei bem na hora que o Emerson fez 2 a 1 para o Gama – e ainda era “cedo”, entrei aos 15 minutos do primeiro tempo.
O jogo, assim como toda a batalha judicial, foi emocionante. Alviverdes e alvinegros fizeram jus ao roteiro fora dos campos e deixaram a partida emocionante do começo ao fim. Ao final do primeiro tempo, foram cinco gols, duas viradas e vitória momentânea dos cariocas. Na volta do intervalo, o Gama teve de buscar o empate duas vezes para terminar o confronto de ida em 4 a 4. Rodriguinho, Emerson, Goeber e Victor Santana fizeram os gols alviverdes.
No Maracanã, novamente quem piscasse perderia um gol. Logo aos nove, Alex Alves abriu o placar para os donos da casa. Na saída de bola, o alviverde já buscou o empate, com Victor Santana. Aos 36, o Gama já vencia por 3 a 1 e os cariocas entraram em desespero.
O roteiro espetacular do confronto ainda tinha mais uma peculiaridade para apresentar. Depois de tanto atacar, o Botafogo teve sua chance de ouro aos 37 do segundo tempo, em cobrança de pênalti.
Alex Alves, artilheiro da Copa do Brasil, estoura uma bomba no travessão e ela volta para o atacante passar meio de barriga, meio de coxa, para Ruy Cabeção marcar o gol que seria a classificação carioca. O jogador comemorou – devia ter olhado para trás.
“Era o empate: não. Wallace Nascimento Valente (árbitro da partida) ouviu o assistente, ele lembrou que a trave é neutra, por tanto o segundo toque de Alex Alves na bola parava a festa do Botafogo e começava a do Gama”
Trecho de reportagem do Globo Esporte (TV Globo), 8 de abril de 2004.
Mais uma prova de duas frases bem conhecidas entre alvinegros cariocas e alviverdes candangos:
Tem coisas que só acontecem com o Botafogo e, claro, se não for sofrido, não é Gama.
*Gabriel Caetano é jornalista formado pelo Icesp. Pesquisador do futebol candango com foco na Sociedade Esportiva do Gama desde a adolescência, trabalhou como analista de comunicação e marketing do clube em 2019, tendo sido ainda diretor de marketing do Capital na reestruturação do clube, em 2018. Divide seu tempo entre curiosidades no Histórias do Gamão e a agência na qual é sócio, a RC Marketing Esportivo.